O Parlamento brasileiro analisa, no momento, a aprovação do Projeto de Lei 1917/2015 que trata da portabilidade das contas de luz, talvez por tentar reproduzir, no Setor Elétrico, o mesmo procedimento realizado, com sucesso, entre os usuários de telefonia celular. Nesse setor telecomunicativo, a portabilidade transfere, fisicamente, o uso do mesmo número de telefone, isto é, do correspondente canal de comunicação, de uma empresa para outra; importa evidenciar que esse canal independe de cabos, de fios ou de qualquer meio físico tangível. Embora esse procedimento tenha se estendido para a telefonia fixa, a estrutura sobre a qual se realiza esse serviço, em alguns casos por fios ou por cabos, não apresenta empecilhos para a pratica dessa transferência.
Outrossim, releva-se o fato de que a qualidade no sinal do telefone e internet, no Setor de Telecomunicação, difere, dentro de uma mesma região, pois depende da demanda e de condições próprias de cada empresa; no Setor Elétrico, contudo, não há como vivenciar diferentes qualidades de acesso uma vez que o elétron sempre será o mesmo, independentemente daquela empresa fornecedora da energia ao consumidor desejoso de portabilidade. Ademais, sublinhe-se, ainda, que essa portabilidade ocorrerá, somente, na parcela de energia elétrica; na parcela “fio”, da distribuidora, não ocorrerá tal portabilidade na medida em que o fio pertence à sua área de concessão, como acontece em toda e qualquer distribuidora operante no país.
Consequentemente, no Setor Elétrico, independentemente de quem é o fornecedor da energia, o elétron indutor da energia recebida não possui “carimbo”, isto é, não indica a sua origem. Não se repetem, pois, as mesmas características de comportamento dos telecomunicativos, mesmo para os casos da telefonia fixa pois, no Setor Elétrico, não há regulamentação que permite, à distribuidora local, remunerar-se adequadamente. Com efeito, essas transferências só a remuneram nas aquisições por “consumidores livres”; essas aquisições representam, de fato, uma verdadeira portabilidade. Importa evidenciar que o sistema brasileiro separou parte do mercado, tornando-o cativo, o que significa que o consumidor residencial e parte significativa do comercial e do industrial só pode ser atendido pela distribuidora local; esses não possuem liberdade de escolha.
Um exemplo por demais interessante poderá explicar o que seria, caso ocorresse no Brasil, uma verdadeira portabilidade, um verdadeiro mercado, cujas regras impostas não impedem a liberdade de escolha de nenhum consumidor e nem possui regras que só fazem dificultar o seu próprio comportamento.
Seja um hotel cujo gerente conhece a sua ocupação média durante um ano e, portanto, pode, ao ir ao mercado elétrico, adquirir a sua energia para atender essa ocupação ao longo de todo o ano; o faz contratando a distribuidora local, a que lhe ofereceu os preços mais adequados, no longo prazo. Chega a alta temporada e o fluxo de turistas cresce: grupos, avisado pelo seu agente de viagens, deverão chegar levando a ocupação do seu hotel para a sua posição máxima. O hotel necessitará de mais energia.
Esse gerente, ao saber dessa chegada, vai ao computador e busca as ofertas de geração distribuída e, assim, pode adquirir energia firme para atender esse período de máxima ocupação; o faz de dois ofertantes: são excedentes de cogeração localizados próximos ao hotel e, nesses casos, conectados ao seu alimentador. Contratos fechados. Esses documentos são informados aos dois geradores e à distribuidora que o atende pois ela retira, do valor de compra, a sua remuneração devidamente controlada pelo órgão regulador. Estamos, pois, diante do que é uma verdadeira portabilidade: o Hotel passou a possuir, nesse período, três fornecedores, o anual e dois provisórios. Isto é mercado !!!
Conclui-se, pois, que, sem uma liberdade de escolha pelo consumidor cativo, colocando-o ao mesmo nível dos demais ditos (por mero decreto) “consumidores livres”, a portabilidade, como deseja esse Projeto de Lei inviabiliza-se por que a distribuidora não tem suporte financeiro para exerce-la. A verdadeira portabilidade só aconteceria com a liberação do consumidor das regras que o torna refém da distribuidora local e daquelas estabelecidas, pelo órgão regulador, segundo processos que, pelo menos na aparência, o defende, dos possíveis desmandos próprios de monopólios.
Esse Projeto de Lei, de fundo benéfico, pode se inviabilizar porque, sem uma alteração na própria estrutura setorial, gera uma contradição com a existência do mercado cativo. Ademais, a exemplo desse país aparentemente fictício, onde se localiza esse hotel, a distribuidora local enfrenta a concorrência de outras para atender todo o conjunto de seus consumidores e há uma significativa presença, salutar para todo o sistema, de geração distribuída que, certamente com uma rede modernizada e computadorizada, conecta o seu emprego com o do seu parque centralizado. Esse país aparentemente fictício, necessita de forte importação de combustíveis e, diante de sua escassez de meios internos de geração elétrica, exige um cuidado especial com a eficiência energética como um significativo instrumento de evitar importações para atender desperdícios.
Por fim, importa deixar claro que, embora dito fictício, o exemplo desse hotel e desse país existe e assim ele opera. Há, deveras, muito a fazer para que o Brasil atinja esse patamar; urge, entretanto, liminarmente, que ele possa entender que o mercado de eletricidade, quando bem regulado e estendido o seu emprego a todos os seus componentes, induz os seus consumidores a agirem como fez esse gerente: ele racionalizou o emprego da sua energia. Obviamente, esse comportamento repercute positivamente para o conjunto do Setor pois outros, com as mesmas funções, da mesma forma como adquire outros seus produtos de consumo (de limpeza, de alimentação e todos os demais), tem condições, assim ocorrendo, de produzir uma tendência setorial ao desperdício zero.
Newton Duarte é presidente executivo da Cogen e Osório de Brito é diretor da regional Rio de Janeiro da Cogen
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